Revolta e gratidão
Sei que esse assunto tem se
tornado repetitivo, mas ainda assim sinto a urgência de falar sobre ele sempre
que surge a vontade ou a necessidade. Expressar-me a respeito ainda me causa
dor, mas, ao mesmo tempo, há um contentamento ao concluir cada texto, frequentemente
acompanhada de um alívio. As palavras que saem do meu coração carregadas de
angustia, revolta, gratidão e contentamento, embora dolorosas, me trazem certo reconforto.
Normalmente, quando perdemos
alguém que amamos, seja porque esta pessoa partiu pra sempre, faleceu, ou de
outra forma se foi, é comum começarmos a nos questionar sobre o tempo
desperdiçado, por não termos aproveitado mais a presença desse ente querido enquanto
ele ainda estava entre nós. Isso aconteceu comigo e ainda acontece, sempre que
me pego refletindo sobre a perda do meu pai. Culpo-me e arrependo-me
repetidamente por não ter valorizado mais o tempo em que ele esteve conosco. Sou
profundamente grata por ter tido a sorte de ter um pai como ele. No entanto,
expressei essa gratidão poucas vezes em palavras – palavras que, mesmo sinceras
e vindas do coração, pareciam vazias, já que quase nunca eram acompanhadas de
atitudes que as comprovassem.
Sempre tive bons exemplos do
meu pai. Ele nunca nos deu um único motivo para nos envergonhar. Pelo
contrário, éramos nós às vezes, que o decepcionávamos - principalmente eu, que
sempre dei mais trabalho em todas as áreas da minha vida. Talvez por isso eu tenha
tanta dificuldade em superar sua perda. Há tantas coisas que ficaram por dizer,
tantos arrependimentos acumulados. Por esses motivos sinto-me revoltada por sua
partida tão prematura. Mesmo sabendo que, um dia todos vão morrer, ainda é
inadmissível aceitar de bom grado quando isso acontece – especialmente de forma
repentina, como foi com ele. Ele estava doente, mas isso já era algo comum; meu
pai sempre teve problemas de saúde. Talvez fossem mais graves do que ele
demonstrava, já que sua morte nos pegou praticamente de surpresa.
Eu estive com ele naquela
tarde em que se queixou de tanta falta de ar. Ainda comentei que poderia ser
ansiedade. Mal sabia eu que seus pulmões estavam se deteriorando e, por fim, se
fecharam completamente. Ele sentiu uma falta de ar angustiante que pediu para
que fizessem algo para acabar com aquilo. Foi então que sofreu um AVC, como se
estivesse pedindo, em seu desespero para ser libertado. Não sei ao certo como
foi, pois eu não estava lá. Quando me chamaram, ele já estava desacordado, após
o AVC, e não voltou mais.
O que mais me dói é lembrar
que não tive tempo de me despedir adequadamente naquela noite. Mas, ainda mais
doloroso, é lembrar que não me despedi de verdade naquela tarde. Foi a ultima
vez que ouvi sua voz, a ultima vez que o vi de pé. Eu disse: “Bênção, pai”, e
ele respondeu: “Deus te abençoe”. Depois, virei-me e fui embora, apressada,
correndo sem motivo, apenas desejando estar em casa. Para nada. Angustiada por
problemas que já não tinham solução. Eu não poderia ter feito nada para salvar
sua vida, mas poderia ter ficado um pouco mais com ele naquele momento.
Estar revoltada por não ter
tido tempo suficiente para ser como eu gostaria, por não ter dito tudo o que
gostaria de ter dito, por não ter tomado atitudes das quais ele pudessem se
orgulhar, tudo isso não importa. Não porque não seja válido se revoltar, mas
porque, ao remoer todo esse sofrimento e renovar essa dor a cada dia, isso não
ajuda. O que eu realmente preciso neste momento - nesta hora em que nada mais
se pode ser feito, a não ser esperar que o luto passe de forma saudável – é
viver casa fase do luto sem pressa. A dor não vai embora, o sentimento não
acaba, mas repousará, e, através das lembranças, parecerá um pouco menos
doloroso.
Estou grata, mesmo estando
ainda revoltada. Sou grata pelo tempo que tive a honra de ter meu pai comigo,
pelo que aprendi com ele, a maioria das lições sem ouvir uma palavra sequer,
mas sim através dos exemplos e das atitudes dele. Confesso que não foi simples
compreender o que ele estava tentando nos ensinar, já que nunca achou que
precisasse explicar. Em sua vida não houve um instrutor, cresceu sem pai, e,
sempre se virou sozinho e queria que nós fizéssemos o mesmo.
Nunca me esquecerei de uma
ocasião em que chegou em casa com uma viola e me deu para que eu aprendesse a
tocar. Mas queria que eu aprendesse sozinha, sem professor, já que meu tio,
irmão de minha mãe e grande amigo dele, aprendeu sem professor. Ele era
autodidata, mas nem meu tio sabia o que isso significava, muito menos meu pai.
Para ele, qualquer pessoa que quisesse tocar um instrumento não precisava de
professor, apenas de dedicação. Algumas coisas, confesso, eram radicalismos que
não consegui compreender no momento em que aconteceram. Foi difícil entender o
que ele queria que fizéssemos, algo que, na cabeça dele, estava tão claro. Hoje
depois de tantos anos, e só depois que
ele faleceu, pude compreender muita coisa sobre o que ele nos ensinava. Sinto
até vergonha de muitas coisas que fiz, mesmo depois de adulta, não só por
ousadia, mas por infantilidade e ingenuidade. Palavras que falei... Dou graças a Deus pelo pai que, mesmo tão
fechado, se mostrava paciente - algo que eu nem imaginava que ele fosse. Se
algo semelhante acontecesse comigo, não sei se conseguiria ficar calada ou
teria sabedoria para processar da mesma forma que ele processava as minhas
atitudes, falhas e loucuras.
Agradeço a Deus pelo pai que
me deu. Mesmo estando revoltada pela sua partida, pelo tempo que perdi e pelo
tempo que não terei sou grata pelo tempo que tive e pelas vezes que não o
desperdicei. Mesmo sem saber que ele tinha tanta paciência comigo, me dando
tantas segundas chances e fechado os olhos para meus devaneios, ou ignorando
meus fracassos, sempre estendeu a mão, mesmo quando eu não merecia, na maioria
das vezes. Preferia não acreditar numa ferida da minha alma, ou apenas fingia, talvez
para não sentir que ele não me protegeu o suficiente quando as coisas aconteceram,
entretanto o que sinto hoje, sem nenhuma mágoa a respeito disso, é que
compreendi que ele passou a vida demonstrando da forma que podia que sempre se importou.
Agradeço ao meu pai, mesmo
que fora de tempo, até por não ter entendido e não saber o porquê me protegia,
ou simplesmente se protegia. Tento aprender com meu pai, que às vezes se
calar, não tomar partido, e, fazer o que se pode fazer é suficiente. Ao invés
de criticar um erro e ofender, ou apoiar a dor do outro como se a pudesse enfraquecer, o
importante de verdade é estar lá, é ser o alicerce, o exemplo.
De toda forma, obrigada meu
pai, pelo tempo que tive.
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